sábado, 23 de julho de 2011

Música

Ele diz que escuta essa música e quer agarrar a mochila, cair no mundo e deixar toda essa merda. A menina faz que sim com a cabeça. Entende, porque um dia quis o mesmo. E encheu a mochila de cacarecos e deixou tudo o que a assustava tanto. Partiu. Chegou até ele depois de um caminho meio largo, e o abraçou com o desespero dos náufragos quando agarram algo na busca louca por não afundar. Ela agora quer a simplicidade de comer essa tangerina embaixo de uma árvore. Quer olhar para ele de pertinho, vendo a barba, os cravinhos na pele, as imperfeições e o traço perfeito da boca.
- Entendeu o que fala a música?
Ela diz que não. Uma e outra vez, até que a música acaba. Só para escutar o que ele explica, esse rolo todo de metáforas e significados.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Antro

Um bar só de homens. Um nicho especial onde eles se reúnem depois do trabalho para beber. Homens de todas as idades, pesos, tamanhos, classe social. E eu. Numa mesa com mais três homens. A princípio foi um pouco incomodo. Depois, ficou divertido. As reações eram as mais engraçadas possíveis. À medida que eu ia entrando naquele templo da cerveja, parecia mais e mais uma peça de decoração kitsch perdida na casa de um mecânico solteiro.
Aqui em La Paz lugares assim são muito comuns. Você passa pela rua e vê uma escada que desce e termina numa escuridão sem fim. Um buraco horroroso, tudo fechado, tudo secreto, cheio de cerveja, suor, perfume de homem. A lógica te diz: é um puteiro. Mas eles garantem sempre que não.
- Que são esses lugares?
- Só bares. Para homens.
- Ahn?
Até que nesse dia pude enfim entrar nesse lugar sagrado, reservado para os machos da espécie. Ao contrário do que muita gente possa pensar, quando estão aí eles não querem ver mulheres. E depois de um tempo olhando, entendi. É o mesmo mistério com relação ao banheiro feminino. Poder estar sozinho ou com semelhantes em uma zona de conforto.
Por exemplo. Num primeiro encontro, a gente capricha. O salto machuca, o decote incomoda, a maquilagem nunca é a ideal, o cabelo nunca está como deveria. Até a mais segura das mulheres já sofreu isso pelo menos uma vez na vida. Nesses momentos o banheiro é a zona de conforto. Não é só pra fazer xixi. É pra por um algodãozinho no pé, olhar no espelho e ter a certeza de que tudo está bem, calma, calma, tudo vai estar bem. Zona de conforto.
Todo homem vai nesse tipo de bar um dia. Casados ou solteiros. Os pais ensinam os filhos. E assim, com cervejinha e amizade, todos vão construindo relações sociais, amenizando a vida e solucionando problemas do mundo exterior.
Ver a sensação de incomodo desses homens com a minha presença me provocou mais que graça. Me fez sentir uma grande ternura por toda essa raça que as vezes parece tão estranha a nós mulheres. Timidamente, olhando pra mim como que pedindo licença ou desculpa por arrotar ou tirar meleca do nariz, ou coçar o saco ou gritar palavras feias.
Aí, nesse singelo caos, comecei a me sentir a vontade também. E tirar a primeira meleca e a coçar o saco imaginário. No final descobri que a vida é linda quando nos sentimos livres, sem querer impressionar. Com arrotinhos tranqüilos num fim de tarde e um sorriso sincero atravessando o copo de cerveja fria.

terça-feira, 28 de junho de 2011

- Eu vou ser porteira.

O rosto enrugadinho sorri meio sem jeito. As mãos meio vacilantes ajeitam bem rápido o gorrinho de tricô. Em seguida os dedinhos pequenos alisam o casaco gasto, entram pelos botões e coçam a pele cheia de histórias sob o corpinho do vestido. Coça a orelha.

- Sabe, estou há meia hora esperando a senhora que vem me buscar. É uma casa de luxo, na Zona Sur. Mas essa gente é meio esnobe, você acha que eu devo aceitar?

Diante da pergunta, olho com mais atenção a senhora cheia de expectativa que está sentada ao meu lado.

- Penso que essa gente vai me tratar mal. Mas é bom o trabalho, vou ficar sentada, vou ter comida. Mas e se me maltratam?

Lhe digo que experimente, e se não gosta, que deixe o trabalho. A pequena e magra senhora, no entanto, não pára de falar. Tem dois filhos que já não sabe onde estão. Tem amigos que lhe ajudam. Tem 200 pesos de ajuda do governo. Tem histórias que “nem gostaria de lembrar”. Tem uma casinha humilde com uma janelinha por onde vê passar a vida de quem ainda corre apressado por ter muito o que viver. E tem medo, muito medo da gente que maltrata os pobres. Com sua voz fina e fraquinha, a única coisa que não tem é alguém que lhe escute os problemas e neuroses. Coisas da solidão.
Fala de estar sozinha como se não se importasse, mas aos poucos os olhinhos rasgados se enchem de lágrimas:

- Gosto de ver gente.

E olha o horizonte povoado por trabalhadores indo para o horário de almoço. Os dedinhos se entrelaçam e fazem movimentos nervosos ao som de uma morenada que não está tocando. Respira fundo mais uma vez.
Chega a futura patroa. Pede desculpas. E intima a senhora-formiguinha a entrar no BMW.
Com passinhos lentos e delicados a senhora se dirige ao carro de luxo. Antes, cochicha em meu ouvido que nunca havia entrado em um carro assim. Como seria seu cheiro?
Bate a porta. Abre a janela:

- Meu nome é Ana. Te conto depois – E acena como se eu fosse uma velha amiga.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Memorias del fuego

“No altiplano andino, mama é a Virgem e mama são a terra e o tempo. A terra, a Mãe- Terra, a Pachamama, se enfurece se alguém bebe sem convidar-la. Quando ela tem muita sede, rompe a vasilha e a derrama.
A ela se oferece a placenta do recém-nascido, enterrando-la entre as flores para que a criança viva. E para que viva o amor, os amantes enterram seus cabelos enrolados.
A deusa terra recolhe em seus braços os cansados e os quebrados que brotaram dela e se abre para dar-lhes refugio no final da viagem. Desde abaixo da terra, os mortos a florecem”
De Memórias do fogo – As caras e as máscaras – Eduardo Galeano

quinta-feira, 24 de março de 2011

Não custa

Deita no chão de casa e para um pouco pra olhar o céu. É economizar energia e ao mesmo tempo tirar uma horinha da nossa vida agitada pra sentir a música da vida, aproveitar pra bater um papo olhando a lua ao lado das pessoas que você mais ama e que nunca escuta. Deixe o planeta respirar e respire também. Você pode ter uma grande surpresa. =D

É SÁBADO, 27 DE MARÇO, ENTRE 20h30 E 21h30 (HORA DE BRASÍLIA)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O senhor da abundância


Aperto. Suor mesmo a 10 graus centígrados e baixo uma chuvinha fina. Nas mãos das pessoas carrinhos, cestinhas com comidinhas pequenininhas e mais uma grande variedade de inhos. Esses mês tudo é inho. É tempo de miniaturas em La Paz. É tempo da feira de Alasitas. Todos saem para comprar em miniatura as coisas que desejam ter grandes. O frio ar paceño fica com um cheiro forte de palo santo. É que além de comprar tem que fazer ch’allar com um yatiri, um bruxo andino, o que cria o vínculo entre o desejo das pessoas e o senhor das Alasitas, Ekeko. Ele vai fazer o pequenino ser grande. O Ekeko. Senhor da Abundância.
Também há cerimoniazinhas. As pessoas se casam, fazem batismos e até divórcios. Compram casas, lotes, planejam viagens e tiram passaportes. E recebem seus documentinhos. Tudo jurado em cartorinhos e devidamente selado com carimbinhos.
La Paz sempre tem uma certa magia no ar, mas essa época é especial, doce. Nossas casas ficam com um cheiro bom de flores com mel e açúcar. O pequenininho é também uma sementinha no coração de que tudo vai dar certo. Agora a esperança para mim tem cheiro, e é fumaça de palo santo. É flor e suor. É maçã-do-amor e miniatura de pão e rosquinhas.
Eu também já fiz minhas comprinhas em Alasitas. Infelizmente ainda não se pode comprar um bloguinho. Mas junto com tantos projetos, O Sussurro e a opinião de todos vocês é muito importante para mim. Essa é minha primeira postagem de 2011. E aqui, desde Los Andes, desejo a todos muita sorte e agradeço por estarem comigo. Esse ano vai ser espetacular. Vocês podem ver? Eu sim, ta evidente nesse sorriso maroto do Ekeko.

P.s.: O Ekeko é boliviano de origem. Não peruano. ;D