terça-feira, 27 de agosto de 2013

Ninguém

Todos os dias ela se sentava na saída de água à esquerda da rodovia. Uma placa de cimento a um lado, uma construção feita por algum prefeito em algum momento para evitar desastres. Ela era o desastre que não pode ser evitado.
Todos os dias pelo menos 300 mil pessoas passavam por ela no caminho ao trabalho. Ninguém sabia quem era ela. Ela era invisível. Sentada no sol, agarrando um trapinho de lã. Ela era o que ninguém quer ver, o que ninguém quer ser, o que todos temem. Ninguém nunca via seus olhos, porque ela não levantava a cabeça há anos. Ela tinha medo, tinha frio. Por isso todos os dias das 10h até as 16h, ela ficava ali sentadinha. Ela não esperava nada da vida. Só um pão e o álcool da noite, que ela bebia para evitar sentir a fome lacerante e o frio doloroso.
Um dia, ela apareceu com um cachorro sarnento. O animal sangrante se sentava ao seu lado. E os dois ficavam ali, sentados à margem da rodovia, cada um sangrando a sua maneira. À margem da dinâmica louca da cidade. À margem das ambições, dos sonhos e desejos. À margem da vida.
Quando o magro cão foi atropelado por um carro de entregas, a senhora pela primeira vez em anos levantou a cabeça. O motorista foi o detentor do segredo: ele viu os olhos que ninguém pode ver em anos. Congelado pelo choque, caiu no abismo.

Na manhã do dia seguinte a polícia encontrou um corpo do sexo feminino congelado em um dos escapes de esgoto da cidade. Ninguém buscou o corpo, ninguém fez enterro, ninguém chorou por ela. Ninguém.